Desistir é também continuar?

Dia 09 de Outubro de 2014 anunciei o Curso +Diversidade. Naquele momento avisava que as inscrições só começariam 15 de Novembro e que iriam somente até de 10 de Dezembro. Nesse entre, muita gente se mostrou interessada, um pequeno barulho se fez. Em minha inocência imaginei que ao menos uma turma se formaria, quem sabe até ficaria sobra para formar outra turma. Pensando grande, outras turmas até poderiam se formar… Ledo engano, como eu já deveria saber e já deveria ter aprendido.

A verdade é que o nosso sistema de vida facilita tudo para que a gente continue sendo LGBTfóbico. Facilita tanto que a gente diz que esse ódio é parte da nossa liberdade de expressão, lutamos pelo direito de expressar o nosso ódio contra certos grupos de pessoas. Facilita tanto que nem achamos mais que somos LGBTfóbicos, ainda que a gente chame a travesti de o travesti, diz que mulher trans não é mulher de verdade, use o termo viado para ofender os colegas e fazemos piada invadindo o Facebook do amigo heterossexual dizendo que ele está desesperado procurando um negão ou uma rola, o que é um insulto não só homofóbico como racista. E como se a famigerada rola fosse a solução de todos os problemas da Terra, segundo a lógica estúpida e falocêntrica. Veja, a sexualidade não heterossexual é piada e há muita gente que ri disso. Enquanto isso, tem transexual e tem travesti  que está sendo explorada, violentada, perseguida e morta… Enquanto isso tem lésbica, tem bissexual e tem gay apanhando na rua… Enquanto isso tem intersexual e queer se suicidando por não suportarem carregar o peso de um mundo tão insensato. 

Nesses anos todos eu não conseguiria contar quantas situações de LGBTfobia eu vi dentro da comunidade da modificação corporal. Seja no plano real, seja no plano virtual, elas estão o tempo inteiro presentes… Vi entusiasta transfóbico, profissional da tatuagem lesbofóbico, vi piercer homofóbico… Vi gente que trabalha com revista de tatuagem vomitando todo o preconceito possível contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, queers e demais possibilidades de existência. E justamente por isso, por esse meu cansaço homérico com essas coisas todas, senti que deveria fazer algo além do que venho fazendo com o FRRRKguys, meu trabalho com performance e minha vida. Tinha a sensação de que poderia oferecer mais. Mas eu estava errado, para a comunidade da modificação corporal no Brasil, que aparentemente está muito confortável sendo LGBTfóbica e fazendo o seu dinheiro, nome e fama e só, não posso fazer muito mais do que já fiz.

Não tenho mais energia para ter que ficar provando que certas coisas são importantes (por exemplo, como não ser uma pessoa ou profissional LGBTfóbico), não tenho mais energia para ficar procurando pessoas que se interessem pelos estudos, pela leitura, pelos diálogos sobre a nossa história e cultura, não tenho mais energia e sinto agora que é um desperdício ficar nessa maratona de um possível fazer, que já deu sinais de que não quer e não vai acontecer. As pessoas que estiverem afim de construir um mundo melhor de verdade vão atrás dessas coisas todas, tenho certeza disso. Quero que essas pessoas saibam que eu estarei aqui como um aliado, sempre que precisarem. Mas não tenho mais forças para seguir adiante com isso.

Inicialmente pensei em aumentar o prazo de inscrição, mas vamos falar a real? O problema nunca foi o prazo, nem valor e nem nada disso, tudo gira em torno da falta de interesse mesmo. As duas únicas pessoas que se inscreveram NÃO são profissionais da tatuagem, piercing ou etc… O problema mesmo é que vocês estão confortáveis com esse sistema grotesco que vivemos, porque eles não apertam o calo de vocês.

Escrevo isso agora não só para avisar que não haverá mais o curso e nem o mapeamento, mas para registrar pra mim mesmo que essa é a realidade do tempo em que vivo. Registrar para não esquecer, para lembrar que tentei propor coisas novas e que falhei. Lembrar que a falta de interesse é o sinal da mais pura manifestação de covardia, indiferença e comodismo e de que tudo bem continuar sendo LGBTfóbico. Afinal de contas, acreditamos na falácia de uma sociedade justa, igualitária e plural e que todo resto é vitimismo e falta de esforço… Sei.

A melhor amostra de que a comunidade da modificação corporal é de fato LGBTfóbica, foi essa que tive agora. Sorte a minha que a decepção não mata, fortalece.

 

 

 

 

 

Comments
5 Responses to “Desistir é também continuar?”
  1. Você é incrível! Trava uma luta num ambiente super hostil e por isso eu mega entendo esse desabafo e preciso dizer que tem muita, muita, muita gente para além desse rolê macho cis ht que te admira muito por sua resistência e o trabalho sensível que faz. Força, muita força, façamos mudanças sempre inclusive essas que incluiem dar um passo atrás.

  2. Sinto tanto em ouvir isso… Eu gostaria tanto de estar no Brasil para poder participar. Espero que seu texto acorde as pessoas a tempo!

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  1. […] em 2015 por T. Angel, todavia, não se concretizou naquela ocasião, para entender mais você pode CLICAR AQUI e ler o que se passou. A sua re-ativação e reformulação em 2020 se deu por conta da atual […]

  2. […] da modificação corporal, precisou ser cancelado. Escrevi sobre isso na época e você pode CLICAR AQUI para […]

  3. […] 2015 por T. Angel, todavia, não se concretizou naquela ocasião, para entender mais você pode CLICAR AQUI e ler o que se passou. A sua re-ativação e reformulação em 2020 se deu por conta da atual […]



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